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18 de dezembro de 2010

Por que o povo não pode ser soberano?

Nos vários meses de campanha eleitoral que antecederam o último pleito para a Presidência da República, fui surpreendido, entre Erenices, Paulos e aborto, por um argumento muito caro e particular à democracia: a vontade do povo e o poder que ela engendra. O princípio, ao cabo, está mesmo no artigo 1º da Constituição Federal do Brasil. Lê-se lá: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. É um fato. E também um sofisma.

Ao contrário do que disseram os políticos e até mesmo do que diz a Constituição do Brasil, não é do povo que o poder emana, nem poderia ser assim. Em primeiro lugar porque ninguém consegue definir muito bem esse ente heterogêneo designado “povo”. Quem aposta nesse argumento defende que, nos sistemas democráticos, a vontade da maioria impera sobre os desejos das minorias. É verdade. E também uma mentira.

A democracia compreende valores que vão além da soma de vontades da maioria. Em meados de setembro, o UOL saiu às ruas para verificar se as pessoas sabiam o que significava “quebra de sigilo”. Corriam os dias em que o tema pautava boa parte das discussões políticas porque envolvia uma denúncia de quebra de sigilo fiscal de alguns políticos do PSDB na Receita Federal. Foram ouvidas 32 pessoas. Desse total, nada menos que 23 não sabiam responder o que aquilo significava. Para representar a sociedade brasileira em sua totalidade, a amostra do UOL careceria de correções, embora ninguém duvide que o resultado não seria diferente.

Agora imaginemos que o UOL tivesse saído às ruas e perguntado a população - portanto, ao povo - se não seria razoável adotar pena de morte para casos de homicídios ou adotar penas como decepação das mãos de ladrões. Provavelmente a resposta seria afirmativa. O povo que não sabe o que é quebra de sigilo poderia saber o significado de conceitos como “Estado de Direito” e “Democracia Representativa”? A resposta seria: Não!
Onde quero chegar com tudo isso? Os princípios democráticos compreendem algo mais que a vontade da maioria e quem zela por eles não é o povo, e sim as elites intelectuais. Dizer que, na democracia, impera o desejo de uma maioria não é democrático, simplesmente porque nada assegura que esse desejo não concorra mesmo para corromper os valores democráticos.  

Todos os regimes totalitários que se estabeleceram no mundo durante o século XX – o Nazismo e o Fascismo são só os exemplos mais cabalmente conhecidos – contaram com o indiscutível apoio da maioria. É falso achar que chegaram ao poder com discursos totalitários. Todos eram bastante democráticos em suas falas.

No livro “Origens do Totalitarismo”, de Hannah Arendt, aprendemos que não devemos deixar os inimigos da democracia chegar ao poder e, uma vez lá, solapar os nossos direitos em nome dos que lhes facultamos. Nesse sentido, pode-se dizer que os defensores do argumento “da maioria” são, sim, inimigos da democracia.

Acredito que a tese seja perigosa e pode mesmo trazer algumas imprecações para quem a defender. Tanto é que os presidenciáveis, de quem deveríamos esperar um conhecimento pleno da democracia brasileira, não ousaram opor-se ao argumento. Durante a recém terminada campanha eleitoral, um dos exemplos mais bem acabados do discurso do poder da maioria pode ser conferido nas falas da presidenciável do Partido Verde (PV), Marina Silva.

Confrontada com temas polêmicos como a união civil entre homossexuais, a legalização da maconha ou do aborto, a candidata deu a mesma resposta: há de se fazer um plebiscito.

É uma escolha ruim. Plebiscitos são recursos legítimos de uma democracia. Porém, quando usados em demasia minam a própria essência de uma democracia representativa. Afinal, para quê eleger representantes se o poder de deliberação de todas as questões são relegadas aos não-eleitos?

E as elites intelectuais, minoria tão importante quanto a maioria como agentes para a manutenção de um sistema democrático, estão sob constante deterioração de sua imagem pública, inclusive na mídia. Para isso, contou o fato de que, durante a ditadura militar, um dos principais redutos de teóricos e simpatizantes da esquerda foi a universidade, sobretudo os cursos ditos “de ciências humanas”, do qual fazem parte os cursos de comunicação social, formando profissionais posteriormente encumbidos da importante tarefa de formar opinião.
Pesa para que as elites intelectuais percam poder de fogo no jogo democrático uma mentalidade mais à esquerda, que tende a associá-las à elite social. Uma coisa não é igual a outra, embora num país desigual como o Brasil elas tendam a ficar bastante próximas.

Na seara dos discursos políticos, uma iniciativa, vejam só, de personalidades do meio jurídico veio a lembrar o que havia sido esquecido durante os 22 anos do Brasil pós-redemocratização: o poder não emana do povo. O pensamento consta na primeira linha do Manifesto em Defesa da Democracia. Lê-se lá: Numa democracia, nenhum dos Poderes é soberano. Soberana é a Constituição, pois é ela quem dá corpo e alma à soberania do povo.

O poder emana das leis. Precisou, uma vez mais, a elite intelectual lembrar ao povo brasileiro que o debate é de outra natureza. Discute-se o Estado de Direito e não um mero jogo de maiorias. 

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