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18 de janeiro de 2011

Manual do jornalismo engajado; ou: como vender sua pauta

Quem ignora o funcionamento dos meios de comunicação talvez não saiba que a notícia que lê é fruto de um processo que, ao fim e ao cabo, é sempre uma rotina de convencimento. Há, na maioria das redações, as chamadas reuniões de pauta, ocasião em que são discutidas possíveis notícias para a edição do jornal seguinte. É nesse momento que o repórter, por exemplo, pode sugerir determinado tema, sua abordagem, foco, direção e fontes a serem ouvidas.

Não é difícil perceber, pois, que uma outra estrutura se organiza para fornecer temas para os repórteres, numa espécie de grupo de pressão a influenciar o jornalismo. O que esses grupos organizados ganham com isso? Ora, podem ver seus objetivos ganhando espaço na Opinião Pública com a credibilidade do jornalismo, sempre superior ao material de propaganda pura e simples. 

O negócio começa mesmo a ficar complicado quando jornalismo e propaganda de uma causa se unem. 

Leiam o que informa o Blog Caixa Zero, da Gazeta do Povo, editado por Rogério Waldrigues Galindo. 

Ele vai em negrito; vou logo em seguida, após o asterisco. 

Os ruralistas deixarão a "segunda abolição" acontecer?

*Comecemos pelo título. Sempre achei bastante preconceituoso o termo ruralista. Nunca ouvi alguém chamar a bancada que defende a legalização da maconha, por exemplo, de "bancada maconheira". Mas tratemos do preconceito mais adiante. 

Está em tramitação na Câmara dos Deputados um projeto que, de tão importante, é chamado por alguns de "segunda abolição da escravatura" no Brasil.
*Espera aí! O que aquele "alguns" está fazendo ali? Quem está por trás daquele pronome indefinido?  A quem interessa o tal projeto em tramitação na Câmara? O "quem", leitores, é um dos termos que se deve responder no começo de um texto noticioso. Quando o jornalista não o faz, existe a sentença sem existir quem a profere.  
Trata-se de uma proposta que distribui para a reforma agrária as terras de fazendeiros condenados por usar trabalho escravo em suas terras. Como todo crime, o uso de trabalho análogo à escravidão também deve ser punido, claro. E o confisco das terras é uma possibilidade.
*Epa! Se é isso mesmo que o projeto propõe, então tem todo o jeito de ser lobby dos tais "movimentos sociais", mais notadamente do MST, que nada mais são do que franjas de um partido - preciso dizer qual?. É claro que quem emprega pessoas em regime de trabalho escravo deve ser punido, mas o deve fazer cedendo terras? Huuum sei! A ser assim, é só estabelecer um critério subjetivo para o que seja trabalho escravo e qualquer empregado de uma fazenda pode ter seu quinhão de terra alegando ter trabalhado como escravo. Isso dá poder de barganha ao MST que pode, livremente, assediar trabalhadores acenando com a proposta de uma terrinha ali e outra aqui ... 

Mas, é claro, tem quem seja contra. E as resistências partem da bancada ruralista. Bancada da qual o Paraná participa com muitos integrantes.
Veja só a declaração que o deputado Valdir Colatto (PMDB-SC) deu à Agência Câmara:
"[O trabalho escravo] é aquele em que a pessoa não pode ir e vir? Aquele [em que o trabalhador] está preso realmente? Ou aquele que tem algum tipo de trabalho que não seja dentro das características e das exigências do Ministério do Trabalho?"
Na avaliação do parlamentar, "tem que existir um conceito para que se possa dar segurança às pessoas, que não sejam enquadradas ou perseguidas por um fiscal qualquer do Ministério do Trabalho ou outra entidade que se julgue no direito de decidir pela vida das pessoas".
*Não vejo nenhum problema nos questionamentos do Deputado Valdir Colatto. Trata-se de dar segurança jurídica tanto ao produtor quanto ao empregado. Conceituar precisamente o que é trabalho escravo, ao contrário do que insinua Galindo, não beneficiária somente a bancada que ele chama, de maneira preconceituosa, de "ruralista". Apontem-me um sistema judiciário que não careça de definições precisas para assegurar a isonomia e o tratamento justo e eu me desminto. Toda legislação ambígua, e isso é truísmo, liberta quem deveria punir e pune quem deveria inocentar. 
De acordo com a ONG Repórter Brasil, que faz parte da Frente Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, a falta de definição de escravidão é uma das "mentiras" mais comuns de quem defende a manutenção do atual sistema.
Há previsões no Código Penal e na legislação trabalhista. E há a definição da Organização Internacional do Trabalho.
Basicamente, trabalho escravo, além de ser degradante, tem de restringir a liberdade. Há quatro formas básicas de isso ocorrer:
- Apreensão de documentos;
- Presença de guardas armados e “gatos” de comportamento ameaçador;
- Dívidas ilegalmente impostas;
- Ou pelas características geográficas do local, que impedem a fuga.
O Brasil tem um trabalho importante de combate à escravidão, mantido pelo Ministério do Trabalho. As regras têm sido aplicadas sem maiores questionamentos (a não ser pela bancada ruralista, muito especialmente no caso da senadora Kátia Abreu).
*Agora me respondam: dada a natureza das ONGs no Brasil, com os sabidos problemas de gestão que muitas delas enfrentam, com irregularidades na distribuição e aplicação de seus recursos, seria mais lógico para um jornalista procurar a definição jurídica do que seja trabalho escravo ou pedir que uma ONG faça isso? Logo em seguida vem um trecho que pode consertar as coisas, elencando as características do trabalho escravo segundo a legislação (inclusive a internacional). 
Acontece que, observem, este trecho entra no texto para contestar a fala do deputado Valdir no trecho anterior, demonstrando, cabalmente, que existe uma definição precisa do que seria o trabalho escravo. Pois é! Acontece que o texto não responde a uma só pergunta do deputado. Vamos recapitular: 
-  o trabalho escravo é aquele em que a pessoa não pode ir e vir? 
- aquele que o trabalhador está, de fato, preso? ou; 
- é aquele que tem algum tipo de trabalho que não está dentro das características e das exigências do Ministério do Trabalho? 
Repito, o que Galindo aponta, segundo a ONG, claro, como determinação do trabalho escravo não responde aos questionamentos do deputado. 
A senadora Kátia Abreu, creio, já deve estar acostumada. Embora seja boa de briga, vive tendo seu nome evocado como símbolo do atraso de uma elite política feudal. É uma bobagem. A luta da senadora é para deixar a legislação mais flexível. Atualmente, a lei em vigor chega a determinar a espessura da madeira utilizada na cama dos empregado rurais ou a distância entre as camas de um beliche. É um absurdo. Um desvio, milimétrico que seja, nestas medidas e o produtor pode ser enquadrado por manter empregados em regime análogo ao de escravidão. 
A ideia de que se trata de "perseguição" parece vir apenas de um único setor. Por que será?
*Aqui Galindo sugere que o "setor ruralista" se coloca como vítima da situação. Eu diria que é mesmo a vítima. O que Galindo fez, escrevendo e publicando uma nota com esse teor, é a mais pura perseguição. Caso o jornalista queira se despir do preconceito - ou será que só os ruralistas o tem? - poderia ter passado pelo site da CEPEA (Centro de Estudos Avançados de Economia Aplicada) e registrado que o Agronegócio - inclui-se aqui agricultura e agropecuária - foi responsável, em 2008, por nada mais nada menos que 25% do PIB total do Brasil. Não é pouco coisa. Com essa participação, ele é um dos principais responsáveis pela propalada estabilidade econômica brasileira. 
Então os produtores são bons para gerar trabalho, renda e emprego aos milhões mas não têm o direito de lutar por uma legislação que lhes assegure a geração de mais trabalho, renda e emprego? Então, quando é para dar bons frutos, é bom que eles existam. Quando é para discutir no Congresso aí são um estorvo à civilização? Que democracia é essa? Se os ambientalistas e sindicalistas podem se organizar em grupos de pressão para fazer valer suas pautas no Congresso, por que os produtores rurais não podem? Seria preconceito? Perseguição, talvez, Galindo? 
O projeto já foi aprovado no Senado e aguarda segunda votação na Câmara. Esperamos que ocorra já no início do ano.
* Aqui o verbo conjugado na primeira pessoa do plural é só para não termos dúvida do "lado" do jornalista. 

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