Caros, reproduzo aqui o irretocável texto do jornalista Lúcio Flávio Pinto sobre essa falácia, essa construção fantasiosa do tal Partido da Imprensa Golpista (PIG). O texto foi publicado no Observatório da Imprensa (nº 624). Lúcio mantém o Jornal Pessoal.
A expressão PIG (Partido da Imprensa Golpista), inventada pelo jornalista Paulo Henrique Amorim, circula há meses como dogma da verdade pela rede mundial de computadores. Seu efeito deve ter sido significativo. Não entre pessoas mais maduras e mais bem informadas, mas entre os jovens e desavisados. Se muitos desses destinatários da mensagem ainda pensavam em ler jornais da grande imprensa, devem ter desistido. Os que continuam a freqüentar suas páginas devem lê-las agora com total ceticismo. Os críticos e adversários das empresas jornalísticas radicalizaram suas posições.
Numa época em que a imprensa escrita convencional sofre a concorrência de mídias mais rápidas e acessíveis, o dano pode ser profundo, agravando o prejuízo econômico (os anunciantes dos Estados Unidos pela primeira vez, neste ano, colocaram mais dinheiro na internet do que nos impressos). A perda maior é para a formação da opinião pública, para a maior circulação de informações com qualidade para fundamentar posições públicas e gerar verdadeiros cidadãos.
Mesmo jornais ruins devem ser lidos. Estimular ou induzir que sejam ignorados é desservir a democracia, a pretexto de fomentar a crítica e combater as elites. A sociedade está cada vez mais repleta de críticos, que não vacilam quando expressam opiniões ou emitem juízos definitivos, verdadeiras sentenças. Mas que não sabem explicar por que são contra. Principalmente por desconhecerem o conteúdo do que criticam ou rejeitam. São personagens patéticos de Oswald de Andrade: não leram e não gostaram.
Biombos invisíveis
Para que se interessar pelo autor fulano de tal se ele é reacionário? Por que dar atenção ao jornal de sicrano se ele representa a burguesia? Como crer nesses veículos de expressão se seus donos estão comprometidos com a perversa classe dominante, da qual fazem parte – e parte extremamente ativa? São os inimigos do povo, como os que Lênin estigmatizou num panfleto famoso.
Desde os bancos escolares, graças à nova geografia, à nova sociologia e outras formas reducionistas do saber, novas gerações se tornam auto-suficientes graças ao estoque de conceitos fechados que lhes são repassados, sobretudo por professores progressistas. Têm definições para cada situação ou personagem, rapidamente rotulado de reacionário ou de revolucionário, de elemento do progresso ou do status quo, de bisonho ou instigante.
O rótulo é afixado sem a necessidade de se conhecer o produto. É como se uma imanência superficial dissesse tudo sobre o que está por dentro – da pessoa ou do acontecimento – prescindindo a penetração no estofo da coisa.
Esse antiintelectualismo, forjado como sendo a pedra de toque da verdade, é erigido em nome da história. Na verdade, porém, é a complexidade da história, enquanto sucessão de eventos, e dos homens como realidades específicas, complexas e inesgotáveis, o que esse novo milenarismo nega.
O conceito de PIG se insere nessa onda de barbárie intelectual com aparência de causa justa e heróica. Por quase toda vida tenho sido jornalista. Passei por algumas das maiores empresas jornalísticas do país. Nunca fui demitido. Saí de todas voluntariamente. Em todas armei confusão, briguei, fiz inimizades, saí, voltei. Até 1989 sempre houve espaço para esses conflitos e para a volta.
Naquele ano decidi que o espaço que me cabia na grande imprensa já não me satisfazia, depois de 21 anos de trabalho contínuo nos ditos jornalões. Armei minha trincheira no Jornal Pessoal, de onde miro na direção das empresas jornalísticas, mostrando seus bastidores, os biombos invisíveis dos seus interesses, as histórias que não contam, manipulam ou ocultam. Mas continuo lendo com algum prazer e bastante proveito o que produzem. Sem essa produção o meu conhecimento se empobreceria. E eu me veria privado de um dos temas que me é mais caro.
Amigo íntimo
Além dos salários quase sempre baixos (embora, pessoalmente, a partir de certo momento, não tivesse mais do que me queixar), o maior problema com que me defrontei nas empresas jornalísticas era a interferência dos donos, uma inconveniência que persiste. Este é um ponto crítico e grave, sobre o qual todas as luzes são necessárias. Houve uma degenerescência no comando das organizações jornalísticas.
No caso das empresas familiares, quase por conta da genética. O sucessor do fundador, ou do filho do fundador, sucede-o por conta da genealogia, mas nem sempre está preparado para assumir a função ou não tem a menor afinidade com o jornalismo. Alguns nem mesmo sabem se expressar, tornando-se inteligíveis – por escrito ou oralmente.
Para eles, a questão editorial é um negócio como outro qualquer. Estão dispostos a vender opinião como se vende salsicha, ou banana. Aos seus olhos, uma redação não é mais do que uma quitanda. Não se pode esperar deles que tenham uma atitude compatível com o caráter muito especial do empreendimento que chefiam. Por isso, devem ser muito bem rastreados.
Sempre que se desviarem da função que lhes cabe na sociedade ou sujeitarem a natureza da atividade editorial ao negócio comercial, à conveniência política ou ao interesse meramente pessoal, devem ser submetidos à controvérsia. É o que eles mais temem e rejeitam: ter que se explicar, ser expostos em praça pública, descer do pedestal, tomar consciência de que seu poder não é absoluto nem seu umbigo é o vértice do mundo.
Quando decai minha crença na importância do jornal impresso, mesmo na sociedade digital do nosso tempo, remexo os arquivos em busca de momentos que criaram essa convicção mais íntima na força da palavra bem escrita, no seu estilo e no seu conteúdo. Algumas peças do passado continuam a servir de inspiração para nossos atos de hoje.
Em qual jornal encontraríamos, por exemplo, esta nota, publicada no Correio da Manhã de 1957:
“Solicitado pelo Correio da Manhã, por telefone, para dar informação sobre assunto da Petrobrás, o cel. Janari Nunes respondeu ao repórter em termos possessos. Gerente dos dinheiros públicos, como presidente que é de uma companhia estatal, em grande parte alimentada por capital subscrito compulsoriamente, o Sr. Janari Nunes tem obrigação de responder ao que lhe perguntar a imprensa, e responder como homem público. Vamos processá-lo por injúria e calúnia. Esperamos que o pte. da Petrobrás repita em juízo – para em seguida prová-las – as infâmias que disse ao repórter do Correio da Manhã”.
Antes, em 1949 (no mesmo ano em que vim ao mundo), o dono do Correio, Paulo Bittencourt, teve que demitir Carlos Lacerda, que escrevia uma coluna de grande apelo, a Tribuna da Imprensa (título que o futuro governador da então Guanabara levaria para seu próprio jornal). O filho do fundador do jornal, Edmundo Bittencourt, descansava em Araxá (uma das estâncias minerais preferidas dos ricos), quando leu duas colunas de Lacerda denunciando o favorecimento da família Soares Sampaio pelo presidente Dutra. Paulo vetou a continuação dos artigos porque Sampaio era seu amigo íntimo de longa data. Lacerda não concordou em interromper a série e se demitiu.
Lembrança necessária
Quantas vezes isso não ocorre numa redação? Só que no Correio da Manhã mesmo a vontade do dono não era absoluta. Ele devia dar explicações ao leitor e ao jornalista atingido. Carlos Lacerda pediu que o jornal publicasse uma nota no dia seguinte e Paulo Bittencourt o atendeu. A nota começa anunciando:
“Má notícia: Carlos Lacerda deixou de colaborar neste jornal. Que nos fará falta sua colaboração – ardente, pessoal, um pouco romântica e subjetiva, mas sempre corajosa e honesta – não há dúvida”.
O dono do jornal informava que decidira suspender a série de artigos de Lacerda porque prejudicavam “amigos meus que eram descritos nas colunas do meu jornal de um modo inteiramente oposto ao juízo que eu pessoalmente faço deles. Justo? Injusto? Não sei e não importa. Carlos Lacerda magoou-se comigo, e dentro do seu ponto de vista, não lhe nego razão. Ele, porém, no meu lugar, faria o mesmo. Perdemos ambos, creio eu”.
Bittencourt exerceu a sua condição de dono do jornal, mas levou na devida consideração o fato de que o Correio da Manhã era um jornal – e dos melhores que já houve no Brasil, o mais influente de 1901, quando surgiu, até poucos anos antes de ser assassinado, em 1974 – e não uma quitanda. Impôs a sua vontade, mas pagou a prenda: dividiu o assunto com os leitores.
Lembro o episódio para que os justiceiros do PIG tenham uma referência melhor sobre o jornalismo do que a realidade que combatem agora.
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